segunda-feira, 22 de março de 2010

Discurso de paraninfo, 12 de março de 2010


Nunca havia sido convidado para paraninfo antes e tive que quebrar um pouco a cabeça para não ficar muito feio. O que saiu segue abaixo.

O tom talvez seja um pouco melodramático, mas acho que é inevitável nessas circunstâncias. Como não sei se vai ter um segundo discurso, aproveito para colocar esse aí em circulação. Ao menos os formandos tem o registro, sei lá.

Abraço a todos e obrigado pelo convite.

ps: a formatura aconteceu no dia 12 de março de 2010


Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao convite para ser o Paraninfo da turma de formandos do curso de História do segundo semestre de 2009. Turma Paulo Pinheiro Machado.

Começo com um lugar comum, que é atestar a satisfação pelo convite e pelo que significa, isto é, a escolha do paraninfo, assim como dos demais homenageados aqui presentes, deve testemunhar de algum modo o apreço dos formandos que o escolhem.

O paraninfo é, por definição, uma espécie de padrinho ou preceptor. Confesso, entretanto, que tenho dificuldade de me ver nesse papel tão paternal. Na verdade, gosto de pensar que a metáfora familiar não é a mais adequada para explicar os laços que ligam professores e estudantes. Nessa grande viagem coletiva que é o aprendizado, o conhecimento, a descoberta, o professor ocupa, no melhor dos casos, o lugar do viajante experiente, que divide suas impressões de viagem, suas descobertas próprias e outras que aprende no caminho. Divide seus apontamentos de percurso, seus mapas e seus portulanos com aqueles que estão se preparando para fazer suas próprias viagens. Algumas viagens serão curtas, outras longas, alguns talvez nem cheguem a tomar coragem para sair de perto da costa ou mesmo sair do porto. Outros ainda vão viajar a lugares que os seus velhos mestres nunca sonhariam em ir.

Assim, seguindo a metáfora da viagem, a escolha do paraninfo talvez seja o reconhecimento da trajetória, do percurso empreendido até agora pelo viajante, um viajante a quem se pede, nesse momento, uma palavra de encorajamento, ou quem sabe de alerta. Assumo os riscos, então, dessa tarefa.

Assim, começo com os meus parabéns. Neste momento a Universidade –a universidade pública e gratuita da qual vocês fizeram parte nos últimos anos – lhes confere seu diploma, que nada mais é do que um passaporte. Um passaporte e um título: historiadores.

O título não lhes dá uma profissão ou uma carreira, mas apenas reconhece que vocês estão agora habilitados para se engajar em sua própria viagem como pesquisadores e professores de história. A viagem, posso lhes assegurar, não será fácil. Mas as viagens que valem a pena nunca são.

Como educadores, vocês encontrarão pela frente o resultado de muito tempo de descaso com esse patrimônio precioso que é o saber e o aprendizado. Tempo demais. Vocês viveram isso como estudantes, e viverão como professores.

As muitas palavras que escutamos todos os dias sobre a importância da educação se mostram frequentemente vazias quando constatamos que a profissão de educador continua a ser vista como um mero apêndice, uma tarefa sem prestígio, sem reconhecimento material e com um reconhecimento simbólico cada vez mais reduzido. Isso é verdade certamente no mundo da educação pública onde muitos de vocês se engajarão, mas a escola privada não apresenta um panorama tão distinto.

O futuro? Não se sabe. É possível que a tarefa republicana de pagar a dívida enorme que a Nação contraiu com aqueles que a construíram, os trabalhadores, homens e mulheres, negros, mestiços e pobres de todas as cores, um dia se torne de fato, como todos desejamos, o eixo central de um projeto de refundação histórica de nós mesmos. O papel da educação nesse projeto possível será sem dúvida essencial e só isso justifica em muito a escolha , a vocação de educador, de professor.

Mas é preciso acrescentar que a história humana não nos dá muitos motivos para otimismo. Se há algo que ela nos ensina de fato é que não devemos esperar que o futuro nos traga algo que nós mesmos não nos esforcemos por arrancar dele.

Por isso, minha sugestão é que abracem com força a missão de brigar pela ampliação do papel da educação em nossa vida republicana, uma educação inclusiva que reconheça e valorize o esforço individual e o mérito, marcada pela qualidade, seriedade e entusiasmo. Uma educação que seja também de fato democrática em seu sentido pleno, isto é, que seja um patrimônio coletivo e não o privilégio de alguns.

Tarefa inglória? Talvez. Mas ninguém fará essa tarefa por nós. Nós somos parte do futuro, como cidadãos e como historiadores. Não há como fugir dele.

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Como historiadores, temos uma responsabilidade a mais.

Os historiadores, na verdade, têm dificuldade de acreditar em fantasmas. Nós sabemos, no íntimo, que não são os mortos que assombram os vivos, mas o contrário. São os vivos que não deixam os mortos em paz, querendo extrair das suas bocas há muito tempo fechadas as justificativas do presente.

A demanda pela história não cessa e dos historiadores muitas vezes se espera que cumpram docilmente a tarefa de serem os fiadores das demandas políticas, identitárias, afetivas e morais dos homens e mulheres de hoje. São demandas legítimas muitas vezes, e há quem se disponha de boa fé a exercer esse papel.

A história faz parte do seu próprio tempo e não pode escapar dele. Não há como fugir a essa demanda civil pela história. Mas isso não significa que os historiadores estão condenados a justificar seu tempo. A lição da história é outra e deveríamos sempre nos lembrar disso. A história não justifica nada.

A história não explica o passado, a história não extrai do passado as respostas do presente. Ao contrário: o estudo da história torna mais complexo o presente, complica o quadro de explicação do nosso próprio mundo, insere a dúvida e nos permite tomar distância do nosso próprio tempo. E essa é a grande qualidade da história, a grande missão intelectual e política da história. Ela expande e torna mais aguda a consciência da nossa própria responsabilidade sobre o presente e isso revela a forte densidade política da discussão histórica.

Assim, meu convite a vocês, jovens historiadores e jovens professores de história, é que se lancem nesse oceano de incertezas com entusiasmo e vontade.

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Não teria, na verdade, cumprido meu papel como paraninfo aqui se simplesmente me limitasse a apontar os desafios e dificuldades do caminho.

Nesse meu felizmente breve discurso há lugar ainda para falar um pouco sobre o outro lado da viagem.

Disse um pouco antes que a história não nos autoriza o otimismo. Mas eu deveria acrescentar: é pedir demais da história que ela faça isso. O otimismo, ou pelo menos o otimismo da ação, há de ser um valor a se cultivar na vida e na prática profissional que, aliás, faz parte da vida (ainda que, muitas vezes, a gente se esqueça disso).

Assim, não gostaria que a minha mensagem hoje fosse ouvida como uma mensagem sombria e desencantada. Ao contrário, acho muito sinceramente que o desafio, a incerteza, a dúvida que são parte fundamental da nossa existência podem ser também um motivador extraordinário.

O caminho escolhido por vocês, de se tornarem historiadores e educadores, professores de história, é cheio de oportunidades. Eu acredito nisso sinceramente.

Oportunidades de conhecimento, de descoberta, de encontros. Mas essas oportunidades não serão nada se vocês não se desafiarem, não tenham a ousadia de buscar, de se arriscar, de tentar descobrir lugares, experiências, ideias diferentes daquelas que vocês já conhecem, diferentes daquelas (quem sabe?) que os seus professores ensinaram.

A partir daí se descortina um horizonte de novidade e, é claro, sempre, mais uma vez, de incerteza e de risco. Mas qual é a alternativa? Não se contentem, então, com a mediocridade, com a falta de imaginação, com a auto-condescendência. Não fiquem medrosos, refugiados no porto.

Enfim, é isso. No início deste discurso falei que vocês conquistaram um passaporte, o seu diploma.

Ora, o passaporte é o documento do viajante, é a autorização para que ele parta para lugares distantes. Meu único desejo é que cada um de vocês reúna a coragem necessária para fazer valer esse passaporte que têm entre as mãos. O seu prazo de validade dependerá apenas de vocês. Boa viagem.

Obrigado.

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